domingo, 11 de novembro de 2012

A Lei 10639 e o Tribunal do Santo Ofício da nova Era



Mais uma polêmica envolve o povo negro e sua conquista de direitos... O ensino da cultura afrobrasileira nas escolas!
As fileiras evangélicas já se levantaram contra o acesso de seus filhos aos deuses e cultos africanos malignos e do mal, como gostam de considerar. A reação dos alunos da escola Escola Estadual Senador João Bosco de Ramos Lima, de Manaus (AM) contrária à tarefa de fazer um trabalho sobre a cultura africana é um sinal de que tempos turbulentos virão e precisamos ficar atentos e prontos a responder à atitudes como esta, que já são frequentes.
Acho muito importante esse tipo de conflito, dentre outras coisas, por mostrar que o povo brasileiro está, realmente, sendo obrigado a lidar com seu racismo que esteve por tanto tempo escondidinho na gaveta, assim como o povo negro. Sim, o que legitimou por tanto tempo o mito da democracia racial foi a inexistência do povo negro no Brasil. Nos mantínhamos em nossos guetos, escondidos e acuados, não nos metíamos em espaços que não nos pertenciam e não questionávamos a ordem “natural” das coisas.
 Tudo estava perfeito até que resolvemos existir! E então começam os discursos dos defensores da igualdade e dos direitos humanos: os negros criam o racismo com leis de segregação de brancos, como as cotas, e imposição de sua cultura sobre a cultura “dos outros”.
Os mesmos defensores que assistem o genocídio da população negra na TV e não dizem nada, que vivem em universidades absolutamente brancas e dizem que “quem quer consegue”, pois “vivemos em um país livre de oportunidades iguais para todos”. As oportunidades não nos foram dadas, então nós resolvemos entrar e pegar. Precisamos de instrumentos legais para sermos respeitados e conhecermos nossa história para além dos escravos indolentes e preguiçosos que nos mostravam os livros de história.
A lei 10639 foi uma das maiores e mais importantes conquistas do movimento negro no que se refere à reconstrução da auto-estima do povo negro, ao reconhecimento de nossa ancestralidade, à superação dos estigmas que marcam a África e tudo que se refere a ela. A obrigatoriedade do ensino da cultura afro levou à necessidade de descobrir a história de África e de nossos ancestrais, não mais com as simplificações convenientes que embasaram o discurso racista desde o século XV, mas agora entremeada por um pedido de desculpa e uma retratação por todas as mentiras que nos fizeram acreditar todos esses anos. Esse é o primeiro desconforto que gerou a reação branca conservadora. Contar essa versão da história significa dizer que a sua era uma mentira que mascarou um processo de extermínio de um continente inteiro e de seu povo na diáspora.
A segunda grande polêmica é a religiosidade, afinal o povo negro não tem cultura e sim cultos satânicos e selvagens. É isso que afirmam ao se colocarem contrários ao ensino da mitologia africana nas escolas para alunos cristãos, os mesmos alunos cristãos que estudam a mitologia greco-romana, cheias de incestos, vinganças, com deuses mesquinhos e cruéis que desprezavam a humanidade. Estudam também a mitologia cristã quando quando falam sobre a Idade Média, as Cruzadas ou a própria importância histórica e geopolítica da passagem de Cristo pela Terra... Enfim, porque a mitologia branca é aceitável e não vai contaminar os coraçõezinhos cristãos desses jovens e a mitologia africana sim???
Insisto em chamar todos esses cultos de mitologias, pois no interior dos muros da escola é assim que devem entrar, não como ensino religioso, mas sim como ensino da cultura da humanidade, conhecimento do pensamento humano, promoção da diversidade cultural e filosófica. Levar isso como filosofia de vida é uma escolha de cada um, que não deveria intervir na sua formação acadêmica, na expansão de suas visões de mundo.
Além disso nunca houve imparcialidade por parte da escola quanto à religiosidade. Diversos materiais didáticos fazem alusão ao cristianismo em seus conteúdos – algo inconcebível em um Estado que se pretende laico. Todos sabemos a dificuldade de alcançar a imparcialidade em qualquer tema, porém é preciso mudarmos nossa postura quanto ao terror que temos do conhecimento, resultado do processo imbecilizante imposto por nossa formação cristã, que proíbe conhecer para não questionar e nos deixa ilhados em um mundo que naturalizou a violência contra e o extermínio de qualquer povo, culto, crença, filosofia, fenótipo fora dos padrões da dominação. 
Como já disse anteriormente a Lei 10639 foi uma grande conquista e não vamos abrir mão dela. Será preciso mais que um index pessoal e um Tribunal do Santo Ofício de pais e alunos rebeldes para parar a luta de um povo que vem sendo espoliado há mais de 500 anos.

7 comentários:

  1. "(...)terror que temos do conhecimento, resultado do processo imbecilizante imposto por nossa formação cristã"(...). Mein Gott! Excelente!Não leio algo tão empolgante sobre cultura negra tem um bom tempo...A luta não pode e nem vai parar! Parabéns, Mari! Achei cada linha maravilhosa.

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  2. Mari, sem sombra de dúvidas, esse foi O TEXTO.....nunca me senti tão contemplado sobre as questões raciais.....É momento de guerrear mesmo e saber que os negros existem, sabem os seus espaços e que têm direitos......Como disse o Eugenio: "Achei cada linha maravilhosa."
    Pra variar, muitas reflexões.....e agradeço mais uma vez por contribuir com minha formação de identidade negra......
    ARRASÔÔÔÔÔUUUUUUUUU NEGA!!!!!!!!

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    1. Ai amore brigadão mesmo. Fico feliz por conseguir contribuir de alguma forma.

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  3. "...resultado do processo imbecilizante imposto por nossa formação cristã, que proíbe conhecer para não questionar...."
    Mari, texto maravilhoso! Digno de você! Contudo é aqui que pretendo me deter e contribuir. Como você sabe, sou cristã e mais ainda: CRISTÃ EVANGÉLICA. E a fundamentação da minha fé foi e é baseada em conhecimento profundo e constante da bíblia. Isso porque entendo que é assim que deve ser. A mensagem de Cristo através de Paulo é "conheçamos e prossigamos em conhecer" Oséias 6:31 e são nessas bases que mantenho minha fé. Foi também baseada nesses princípios que fui constantemente estimulada a estudar, buscar informações, entender os porquês e nunca pré conceituar antes de conhecer o conceito de tudo. Esse princípio também é bíblico. São palavras de Paulo novamente: "Considere todas as coisas, mas retenha só o que é bom."Tessalonicenses 5:21 Infelizmente muitas igrejas evangélicas ultimamente tem se centrado em princípios que não condizem com essa máxima. Não estimula mais seus praticantes a um aprofundamento no CONHECIMENTO. Isso muito me remete a igreja católica romana da idade média com suas missas em latim e suas bíblias limitadas aos sacerdotes. Sabemos que esta ação favorece o crescimento de um povo MASSA DE MANOBRA nas mãos dos mercenários políticos religiosos cujo objetivo é puramente econômico e financeiro. O que quero esclarecer aqui é que apesar de saber que esse tem sido um comportamento quase hegemônico dentro das igrejas cristãs: católicas ou evangélicas, esse NÃO É UM PRINCÍPIO BÍBLICO. Não condiz com o que o MANUAL DE INSTRUÇÕES dos 'crentes' nos ensina e, portanto, 'o processo imbecilizante de nossa formação cristã' como disse você, é fruto de nosso DESCONHECIMENTO da base do cristianismo, ou seja, da BÍBLIA.
    Tenho trabalhado com meus alunos os últimos 4 anos, todos os dias do mês de novembro, temas ligados a africanidade. E me sinto extremamente a vontade quando o assunto é religiosidade porque eles se surpreendem com uma cristã evangélica contando com tanta fluência a história de IANÇÃ ou de NANÃ, discutindo com eles porque a representação de IEMANJÁ é, por tantas vezes, branca e outras coisas. Sou sempre clara em dizer que minha fé é TÃO, mas TÃO firmada em bases sólidas que posso conhecer qualquer outra coisa e falar sobre elas que isso não me desestabiliza. Só se incomoda em falar sobre a religiosidade alheia aquele que se sente inseguro em suas bases porque a gente só grita quando dói, não é mesmo?
    Sendo assim, Mari. 'Conhecer sem questionar' como você disse é ruim. Mas é ainda pior não se permitir conhecer. E isso não é cristão. Isso é ignorância pura!

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    1. Uau Priscila!!!
      Mto obrigada por essa contribuição!! Tbm sou cristã e me preocupo mto com os "usos" que tem sido feitos da palavra de Deus, principalmente Jesus que poderia mesmo ser um símbolo de amor e perdão e tem uma história de intolerância e ódio nas mãos de certos pregadores que defendem a ignorância e uma fé cega e sem questionamentos em um Deus de valores altamente questionáveis...
      Mas ver que existem cristãos como vc por aí me deixa mais à vontade e esperançosa de que a história pode mudar.

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  4. se bem que sem aspas ficou bacana como ironia... aeiahei

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  5. A bendita ironia que sempre me salva hahhahhaha

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