sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Estou fazendo uma experiência de leitura alternando livros de escritores e escritoras brancos e negros. Tal exercício tem rendido reflexões interessantes sobre os temas e grandes questões abordadas nessas obras. Hoje acabei de ler "A redoma de vidro", de Sylvia Plath, romance no qual, em minha leitura, a autora esmiuça o sofrimento psíquico de mulheres brancas, através das experiências e leituras de vida da narradora-protagonista, Esther Greenwood, a qual consegue dar cores fortes, novas e ainda mais inquietantes para temas polêmicos como depressão, suicídio, amor, desejo, desprezo e outros sentimentos/sensações/condições/sofrimentos/"disfunções" humanas.
Porém devo confessar que demorei para me empolgar e perceber a relevância, ainda hoje (sobretudo hoje, embora o livro seja de 1963), desse tipo de história. Foi difícil não cair no discurso que limita o sofrimento apenas a questões materiais, dores físicas e privações de direitos básicos, sobretudo após leituras como "Alegrias da maternidade", "Hibisco roxo", "A cor púrpura", "Ponciá Vicêncio" e tantas outras histórias repletas de um sofrimento tão palpável, tão real. Histórias sobre mulheres torturadas física e psicologicamente, repletas de dores tão profundas e devastadoras que, muitas vezes impediram as personagens até mesmo de sentir, de sofrer. A realidade excruciante do racismo não permite abstrações, não dá espaço para múltiplas interpretações, pretendeu, desde sempre, assassinar o lirismo e a complexidade da personalidade e psique negras. Felizmente a alma humana sangra poesia e hoje temos essas maravilhas literárias para nos consolar e nos lembrar de nossa humanidade.
Portanto, no momento em que estava quase ignorando o sofrimento de Esther e, consequentemente, de muitas mulheres brancas, me lembrei da poesia preta que aquece meu coração e me move pra luta intransigente contra toda e qualquer forma de opressão, a qual, ao contrário do que muitos dizem e pensam, nos faz olhar para as pessoas como pessoas, nos faz querer acabar com o sofrimento do mundo e não mudar a cor de quem sofre, tampouco tentar mensurar a dor não sentida.
Enfim, "A redoma de vidro"...
Desconfio que pessoas incapazes de pensar em suicídio, como eu, sempre tributam o impulso suicida a uma tristeza profunda (carregada de uma boa dose de egoísmo, devo dizer). No caso de Esther creio que o egoísmo e o desprezo pela maioria das pessoas que a cercavam foram determinantes para seu quadro depressivo. A falta de perspectiva de uma vida relevante a apavorava; a mediocridade, tão comum e até desejada por quase todo mundo, era um pesadelo prestes a se tornar realidade, tudo parecia depender do fim da faculdade, de sair da bolha de prêmios e estudos vazios e partir para a mesma vida da qual sempre tentou fugir: a pasmaceira suburbana da mulher do lar, esposa e mãe.
A narradora-protagonista nos coloca dentro do cérebro de uma mulher torturada por uma dor cega, irracional e sem qualquer justificativa aceitável para os padrões capitalistas de sofrimento legítimo, uma dor causada pelo total vazio da vida da mulher  branca suburbana e pretensamente burguesa!
Uma jovem bonita, inteligente, com um futuro promissor, sem fortuna, mas também sem passar por privações sérias, amada (se é que podemos falar em amor nessas relações tão funcionais, quase obrigatórias) pela família, amigos e até com um romance/casamento em potencial. Como entender/aceitar que essa mulher seja tomada por tristeza e desgosto pela vida? Todos os quesitos para a almejada felicidade burguesa foram preenchidos e, ainda assim, ela permanece "dentro da mesma redoma de vidro, asfixiada na própria respiração ácida". 
A lista de conquistas e prazeres da protagonista cegaria qualquer um para a descrição detalhada do vazio de sua própria existência, a ausência de perspectivas de uma vida independente e relevante, a impossibilidade de retribuir o "amor" recebido devido à total falta de admiração e respeito pelas pessoas que o oferecem. A vida em um mundo que exige mulheres independentes, produtivas e fortes, mas ainda submete a felicidade dessas mesmas mulheres a um modelo de família arcaico e opressor pode transformar o seu sucesso, seu corpo, desejos e sonhos em fardos insuportáveis. 
No texto, dentre outras coisas, ficamos diante de um terrível conflito entre os desejos e sonhos de Esther e aquilo que ela precisa desejar e sonhar. Sua incapacidade de conviver tranquilamente com a mediocridade, seu desprezo pelos sonhos pequenos das suas iguais e seu medo paralisante de se tornar, ela mesma, a pessoa medíocre que tanto despreza são alguns dos demônios rondando a mente tão pateticamente fascinante dessa estranha narradora-protagonista.