terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Moana, ancestralidade, sororidade e força

Foi preciso muitos anos de treinamento para chegarmos à perfeição dos contos de fadas, foi preciso nos voltarmos para civilizações ancestrais, totalmente livres dos desmandos ocidentais, cristãos e burgueses para podermos ver um mundo diferente, uma sociedade, uma sociabilidade e religiosidade menos apegadas a valores capitalistas como a propriedade e a hierarquização marcada pela divisão social do trabalho e de gênero.
A pequena ilha de Motunui estava prestes a receber um novo líder, que seria responsável por guiar o povo e tomar decisões que beneficiassem a todos. Esse grande líder não era melhor do que ninguém na aldeia, não recebia privilégios, além do respeito de todos por aceitar essa grande responsabilidade. Na verdade, esse grande líder era apenas mais uma das muitas peças fundamentais para a sobrevivência da ilha e de seus habitantes e esse novo grande líder era uma mulher. A jovem Moana assumiria essa posição e, ao contrário do que sempre vemos nos desenhos e contos de fadas, não havia maquinações internas, grupos rivais e invejosos da posição assumida por ela, tampouco fazia diferença o fato de ela ser uma mulher. O pai de Moana estava orgulhoso e feliz por passar a liderança para a filha. Esse é o primeiro momento de deleite com o filme: a possibilidade de ver um mundo em que as pessoas são apenas pessoas, em que uma mulher em posição de poder não é ameaçador, tampouco revoltante.
Mas há muito mais beleza nessa linda história. A mulher é exaltada à condição de elo que une a natureza e seu povo, nada daquela visão cristã machista da mulher responsável por manter a família nuclear burguesa unida, mesmo sendo violentada de diferentes formas por seu dono/marido. Nada disso! As mulheres em Motunui mantêm o povo coeso, trazendo de volta sua história, mantendo vivo o legado de seus ancestrais e estabelecendo o diálogo entre o passado, presente e futuro, entre o terreno e o sagrado. A mulher jovem (Moana), a mulher madura (sua mãe), a mulher idosa (sua avó) e a mulher divina (Te Fiji) retomam a importância da ancestralidade, reforçam os elos rompidos pelo medo e pela falta de amor.
Toda a trama se desenvolve em torno do fato de que o coração de uma divindade feminina, chamada Te Fiji, foi roubado por um semideus que queria presentear a humanidade com a capacidade infinita de criação e cura. Mas a ira dessa divindade coloca em risco todo o mundo, pois, aparentemente, uma mulher não é capaz de liderar sem um coração!
Antes que as feministas se levantem e queiram queimar os estúdios Disney, saiba que esse coração, nada tem a ver com a bobagem machista ocidental da mulher “feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor [um homem qualquer] e pra ser só perdão”. Trata-se de um coração ligado à ancestralidade, ao amor pelo seu povo, por seus iguais, pela natureza e tudo que é sagrado no mundo. O filme nos mostra que somente uma mulher é capaz disso, de gerar a vida, mesmo quando está em meio ao caos e sofrimento criado por homens confusos e sem qualquer conhecimento do amor, por ter sido privado dele a vida toda. Mais do que isso, o filme mostra que o amor, materializado na figura feminina, é capaz de restaurar o elo com esse homem, por meio da restauração de seu coração e, desse modo, religar-se à natureza sagrada.
Maui representa esse homem, o típico exemplo do homem não branco, inseguro, carente e perdido, o qual consegue se encontrar a partir da vivência com uma mulher igual que o coloca diante de suas dores e ajuda a encontrar o caminho. Moana enfia o dedo na ferida de Maui, aberta por sua história de abandono e desamor, coberta e bem protegida por um escudo de arrogância, uma ilusão de poder, coincidentemente materializada em um objeto bem fálico, cuja perda representou o fim de toda confiança e autoestima do semideus, menino e ingênuo. A relação de Moana e Maui, se pensada como alegoria da sociedade atual, é um ultimato para que homens não brancos parem de fugir de sua história, se escondendo embaixo da saia de mulheres incapazes de entenderem suas dores ou se iludindo com uma suposta valorização de sua super sexualidade, enfrentem os problemas de seu povo, assumam sua responsabilidade na criação desses problemas e na devastação da alma de suas mulheres/irmãs. 
Equilíbrio, ancestralidade e muito amor é a receita para essa linda história de todas nós!