domingo, 3 de abril de 2016

Por que ler literatura negra? Chimamanda e nós!

Sabe aqueles momentos quando você se pergunta: “por que demorei tanto para fazer isso? Por que não conheci isso antes? Isso teria mudado a minha vida!”. Pois é, há tempos não sentia isso...acho que a última vez em que esse sentimento realmente me balançou, foi quando conheci o trabalho de Toni Morrison, um soco no estômago e um carinho na alma por, finalmente, me sentir em casa, conhecida e reconhecida, mesmo que a casa fosse, por vezes, sombria e gelada, havia sempre um cantinho aquecido chamado identidade. Hoje estou me retorcendo e lamentando não poder voltar no tempo para ter conhecido a obra de Chimamanda Ngozi Adichie antes. Na verdade, gostaria que tivesse existido ou chegado até mim, obras como essas na minha adolescência; obras que me retratassem da maneira como gostaria de ser vista: apenas mais um ser humano, cheio de conflitos, contradições, desejos, defeitos e qualidades, sim, ao menos alguma qualidade já seria um pouquinho de saúde, um descanso da loucura de ser sempre tão horrendo e desprezível. 

Foi justamente a possibilidade de fugir dessa loucura, ao menos na ficção, que me causou o primeiro impacto durante a leitura, quando me dei conta, mais uma vez, de como nos deixamos cegar pelo racismo, de como aceitamos as “histórias únicas” como única possibilidade de leitura da realidade. Sua obra nos apresenta lugares complexos e não apenas bons ou maus, sem romancear a realidade, sem pintar um cenário idílico e saudosista de uma África gloriosa de reis e rainhas, nem se prender ao estereótipo do continente vitimado pelo colonialismo branco. Pra começar, ela nos faz o grande favor de não falar de África, mas sim de nigerianos e nigerianas, seres humanos vivendo e se formanda a partir de seus contextos sócio-históricos, por vezes horrendos, mas nunca desprezíveis. 

Pois bem, AINDA não sou a maior conhecedora da obra de Adichie, porém, ao ler “Americanah” e “Hibisco Roxo”, me vi diante de autênticos e maravilhosos exemplos do que considero a melhor invenção da burguesia: o gênero romanesco. A autora desafia o fatalismo dos adoradores de James Joyce e de floreios modernistas, que anunciaram o fim do romance por duvidarem da capacidade humana de criar obras tão herméticas quanto aquelas dos vanguardistas modernos. Afinal, obras muito “acessíveis” jamais teriam o mesmo valor, a não ser que fossem legitimadas pelas limitações de seu momento histórico, haja vista que ainda lemos coisas como “A moreninha”... Segundo esses intelectuais, o romance morreu!
Mas Chimamanda segue em frente e escreve suas narrativas com o sabor de quem apenas deseja contar histórias, de quem tem a sensibilidade necessária para nos mostrar o mundo sob o prisma delicado e sempre inovador do artista. Porém eu não sou apenas uma entusiasta das historinhas, leio com o desejo de buscar prazer, como qualquer leitor, mas minhas apreciações estéticas estão permeadas por minha formação acadêmica. Chimamanda tem uma narrativa bastante objetiva, linguagem direta e uma linearidade que, certamente, incomoda a crítica sedenta por leituras descontínuas e difíceis. Mas isso não significa que o conteúdo de seu texto seja simples, tampouco óbvio. 

A literatura tem exercido diferentes papeis ao longo da história, que vão muito além de, simplesmente, distrair e entreter, dentre essas funções está a consolidação de lugares e valores sociais. Nesse contexto, sua atuação foi fundamental para a consolidação do racismo como parte fundante de nossa formação, pelo apagamento do sujeito negro da produção literária, seja por sua representação sempre pejorativa, animalizada e marginalizada, seja pela exclusão de escritores e escritoras negros e negras do seleto grupo do cânone literário. Impossibilitar a circulação de histórias sobre e contadas por pessoas negras foi determinante para que a história única sobre a inserção do negro no mundo ocidental e mesmo sobre o negro africano, pré e pós colonização, se tornasse a única verdade sobre nós.

O êxtase causado pelas deliciosas descrições de sentimentos, corpos e rostos negros, na obra de Ngozi, só pode nos fazer pensar que são, de fato, genuinamente humanas. Nos obriga a começar a tirar o negro daquele lugar do grotesco e do sórdido no qual estamos acostumados a vê-los, a nos ver. Amor e beleza são as palavras-chave para percorrer esse universo, porém, novamente, não temos os idealismos dos românticos do século XIX, nem o fatalismo de alguns romances modernos e contemporâneos, com suas personagens saudosistas e deprimidas por viverem em um mosaico do foi a perfeição de alguma época que eles não viveram...seja lá o que isso signifique...

Seu trabalho retrata a contemporaneidade, não apenas dos contextos, cenários e temas, mas sobretudo dos sentimentos e das relações afetivas. Tudo é descrito a partir de um compromisso fiel à realidade atual, com um objetivo, quase diabólico, de nos tirar de nossa zona de conforto de pensar que as coisas “são porque são”, e nos colocar em contato/conflito com o fato de que nada mais será como antes! Nossos heróis morreram de overdose, nossos valores estão caducos e nossos relacionamentos falidos. Porém, ainda nos move esse desejo constante de amar, de ter contato, de sofrer um pouco também...porque não? Esse desejo incontrolável e devastador por humanidade! E nós não seremos capazes de fugir dele.

Talvez o romance tenha, de fato, morrido para xs brancxs. Talvez não tenha mais sentido contar e recontar sua própria história. Talvez não valha mais a pena repetir as mentiras sobre a história de outros povos. Mas a nossa história ainda precisa ser contada, desmentida e, até mesmo, romanceada. Nossos heróis precisam ser descobertos, mostrados e criados por mentes cheias de talento e paixão. Porém, agora serão nossas próprias mentes e corpos negros como a noite que contarão as histórias, que desvendarão a verdade e construirão realidades para as quais poderemos fugir quando a realidade doer demais.

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