Sabe aqueles momentos quando você se pergunta: “por que demorei tanto para fazer isso? Por que não conheci isso antes? Isso teria mudado a minha vida!”. Pois é, há tempos não sentia isso...acho que a última vez em que esse sentimento realmente me balançou, foi quando conheci o trabalho de Toni Morrison, um soco no estômago e um carinho na alma por, finalmente, me sentir em casa, conhecida e reconhecida, mesmo que a casa fosse, por vezes, sombria e gelada, havia sempre um cantinho aquecido chamado identidade. Hoje estou me retorcendo e lamentando não poder voltar no tempo para ter conhecido a obra de Chimamanda Ngozi Adichie antes. Na verdade, gostaria que tivesse existido ou chegado até mim, obras como essas na minha adolescência; obras que me retratassem da maneira como gostaria de ser vista: apenas mais um ser humano, cheio de conflitos, contradições, desejos, defeitos e qualidades, sim, ao menos alguma qualidade já seria um pouquinho de saúde, um descanso da loucura de ser sempre tão horrendo e desprezível.

Pois bem, AINDA não sou a maior conhecedora da obra de Adichie, porém, ao ler “Americanah” e “Hibisco Roxo”, me vi diante de autênticos e maravilhosos exemplos do que considero a melhor invenção da burguesia: o gênero romanesco. A autora desafia o fatalismo dos adoradores de James Joyce e de floreios modernistas, que anunciaram o fim do romance por duvidarem da capacidade humana de criar obras tão herméticas quanto aquelas dos vanguardistas modernos. Afinal, obras muito “acessíveis” jamais teriam o mesmo valor, a não ser que fossem legitimadas pelas limitações de seu momento histórico, haja vista que ainda lemos coisas como “A moreninha”... Segundo esses intelectuais, o romance morreu!
Mas Chimamanda segue em frente e escreve suas narrativas com o sabor de quem apenas deseja contar histórias, de quem tem a sensibilidade necessária para nos mostrar o mundo sob o prisma delicado e sempre inovador do artista. Porém eu não sou apenas uma entusiasta das historinhas, leio com o desejo de buscar prazer, como qualquer leitor, mas minhas apreciações estéticas estão permeadas por minha formação acadêmica. Chimamanda tem uma narrativa bastante objetiva, linguagem direta e uma linearidade que, certamente, incomoda a crítica sedenta por leituras descontínuas e difíceis. Mas isso não significa que o conteúdo de seu texto seja simples, tampouco óbvio.
A literatura tem exercido diferentes papeis ao longo da história, que vão muito além de, simplesmente, distrair e entreter, dentre essas funções está a consolidação de lugares e valores sociais. Nesse contexto, sua atuação foi fundamental para a consolidação do racismo como parte fundante de nossa formação, pelo apagamento do sujeito negro da produção literária, seja por sua representação sempre pejorativa, animalizada e marginalizada, seja pela exclusão de escritores e escritoras negros e negras do seleto grupo do cânone literário. Impossibilitar a circulação de histórias sobre e contadas por pessoas negras foi determinante para que a história única sobre a inserção do negro no mundo ocidental e mesmo sobre o negro africano, pré e pós colonização, se tornasse a única verdade sobre nós.
O êxtase causado pelas deliciosas descrições de sentimentos, corpos e rostos negros, na obra de Ngozi, só pode nos fazer pensar que são, de fato, genuinamente humanas. Nos obriga a começar a tirar o negro daquele lugar do grotesco e do sórdido no qual estamos acostumados a vê-los, a nos ver. Amor e beleza são as palavras-chave para percorrer esse universo, porém, novamente, não temos os idealismos dos românticos do século XIX, nem o fatalismo de alguns romances modernos e contemporâneos, com suas personagens saudosistas e deprimidas por viverem em um mosaico do foi a perfeição de alguma época que eles não viveram...seja lá o que isso signifique...
Seu trabalho retrata a contemporaneidade, não apenas dos contextos, cenários e temas, mas sobretudo dos sentimentos e das relações afetivas. Tudo é descrito a partir de um compromisso fiel à realidade atual, com um objetivo, quase diabólico, de nos tirar de nossa zona de conforto de pensar que as coisas “são porque são”, e nos colocar em contato/conflito com o fato de que nada mais será como antes! Nossos heróis morreram de overdose, nossos valores estão caducos e nossos relacionamentos falidos. Porém, ainda nos move esse desejo constante de amar, de ter contato, de sofrer um pouco também...porque não? Esse desejo incontrolável e devastador por humanidade! E nós não seremos capazes de fugir dele.
Talvez o romance tenha, de fato, morrido para xs brancxs. Talvez não tenha mais sentido contar e recontar sua própria história. Talvez não valha mais a pena repetir as mentiras sobre a história de outros povos. Mas a nossa história ainda precisa ser contada, desmentida e, até mesmo, romanceada. Nossos heróis precisam ser descobertos, mostrados e criados por mentes cheias de talento e paixão. Porém, agora serão nossas próprias mentes e corpos negros como a noite que contarão as histórias, que desvendarão a verdade e construirão realidades para as quais poderemos fugir quando a realidade doer demais.
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